quarta-feira, 23 de março de 2011

Chico Buarque e as cidades submersas - a criação na condição de não-pertencimento espacial


¨  O processo de criação artística na contemporaneidade extrapola territórios, cria conexões, redes e desenraizamentos. A desterritorialização seria uma forma de se pensar a arte como modo de experiência do sujeito, deslocando e mobilizando o processo criativo? Conceitos de desterritorialização, nomadismo e hibridização aplicados na criação de uma obra podem, talvez, interpelar o artista em sua autopoiese. O homem contemporâneo, segundo Felix Guattari é um ser desterritorializado, em constante linha de fuga. Chico Buarque nascido na intelectualidade brasileira transita em diferentes linguagens e narrativas - literatura e música; erudição e cotidianidade. Nesta perspectiva de desterritorialização, abandona territórios regionais e vivencia outros fluxos espaciais, sob a condição de não pertencimento, tanto nos procedimentos de criação, quanto em suas narrativas - uma cartografia de multiplicidade de espaços, da subjetivação, do urbano e da memória. Seus personagens se dão no estrangeirismo, na fuga, no exílio ou no reconhecer-se no outro. Este estudo tenta perceber o processo de criação de sua poética, sob a ótica do não-lugar, ou seja, dos espaços moventes que podem constituir sua obra.
Palavras-chave: Chico Buarque; Desterritorialização; Autopoiese; Processo de Criação.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Chico Buarque e as cidades submersas: a criação na condição de não-pertencimento espacial

24 de fevereiro de 2011

Você me vê por aqui, mas eu estou lá, na curva da Pedra do Arpoador, na curva dos trilhos do bondinho, na curva das esquinas da Av. Rio Branco, nas curvas do Joá rumo ao azul, nas curvas do Pão de Açúcar, nas curvas da cúpula do CCBB, nas curvas do Sambódromo, nas curvas das letras de Chico.
Curvo-me ao Rio!

Mar.
Mar do Rio.
Olhos marítimos de Chico.
A poética que perpassa o azul, asfalto, brejo, bar em bar, construção, atravessamento de personagens, guris, pivetes, operários, prostitutas, Rita, Nicanor, Carolina, Beatriz, Pedro...Chico.
Francisco, nome de rio.
Eu rio, rio, rio.
Volto ao Rio!

Este blog é o registro de toda produção de textos acerca da pesquisa "Chico Buarque e as cidades submersas: a criação na condição de não-pertencimento espacial", vinculada ao Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea - UFMT. Toda escrita, impressões, contemplações, hipóteses e conceitos desenvolvidos virão à tona, seja em discurso científico, seja num tom confessional de sensação, perfume, sombras que me rodeiam, me conduzem a obra de Chico.
Sou uma carioca apaixonada pelo Rio e, Chico para mim é o autor que descreve, despudoradamente encantado, todas as cruezas e exuberâncias do Rio.
Por isso Chico, por ser Rio e por eu ser também.

Maira Jeannyse, em algum dia quente de outubro, em Cuiabá...em-prenhada de Rio...

24/FEVEREIRO/2011

“Chico Buarque e a subjetividade da cidade vivenciada – o desterritório do ser”


A contemporaneidade nos fala do ser humano desterritorializado e prevê interações entre corpo-espaço, entre territórios-rede, uma cartografia da multiplicidade. O espaço materializa estares e, quando vivenciado, agencia desejos, criando novos territórios de conexão. O indivíduo contamina-se por esta pluralidade de territórios, dilata-se e acaba desterritorializando-se, pois é interpelado pelo espaço subjetivo. O processo de criação do compositor Chico Buarque em sua obra parece descrever personagens atravessados por uma geografia que extrapola regiões, fronteiras, cuja existência se dá no não-lugar, no estrangeirismo de ser, assim como o próprio autor, à deriva, em suas caminhadas. Este estudo tem como ponto de partida a cidade materializada na poética de Chico Buarque para perceber o agenciamento de afetos, conflitos e desejos de personagens que amalgamados constroem uma narrativa do “tornar-se muitos”.
(Maira Jeannyse)

24/fevereiro/2011

O novo disco de Chico Buarque

Chico1925

Desde que Chico Buarque respondeu “depois de um livro eu começo a mexer com música” a um jornalista na noite de entrega do prêmio Jabuti, começou a circular o boato de que ele estaria preparando um disco. No entanto, só há poucos dias soube através do compositor Guinga (parceiro do Chico em “Você, você”, a canção edipiana) que, de fato, o boato virou notícia. Chico já esquenta os estúdio da Biscoito Fino para a gravação de um novo projeto, que se desenrolará neste semestre.

Analisando a linha de produção do compositor, depois de “Estorvo”, seu primeiro romance de 1991, vieram dois discos autorais. Daí a pausa para escrever “Benjamin”, em 1995, e em seguida um longo período só dedicado à música. “Budapeste”, terceiro romance, veio em 2003. Depois disso Chico começa a filmar aquela famosa série de 12 DVDs sobre sua vida e grava “Carioca”, em 2006. Então dedica-se novamente à literatura e em 2010 lança “Leite derramado”.

Para mim, este novo disco e o da Gal Costa que está sendo produzido por Caetano Veloso são os mais esperados lançamentos da música brasileira para o ano.

(Tauil)
@tauiltter

Novo disco de Chico Buarque tem parceria com João Bosco

Chico Buarque, capa da revista Alfa de fevereiro, está esquentando um novo disco. Isso já foi noticiado, o que viemos falar é que, em entrevista à revista, Chico diz que seu álbum trará uma nova parceria com João Bosco, um dos maiores violonistas da música brasileira. Os dois já assinaram a parceria em “Mano a mano” e em “Pagodespell”, uma pouco conhecida mistureba musical que envolve também Caetano Veloso e Oswald de Andrade (!).

Além disso, um blues e uma valsa russa chamada “Nina” também estão no repertório. A revista já está à venda nas bancas com fotos de Walter Carvalho e perfil biográfico (de novo) da Regina Zappa.

(TAUIL)
@tauiltter

FONTE: http://www.artilhariacultural.com/2011/02/11/novo-disco-de-chico-buarque-tem-parceria-com-joao-bosco/




12/julho/2010

Músicas de Chico Buarque podem virar série na Globo

De acordo com a coluna da Mônica Bergamo, na Folha, as músicas do Chico Buarque vão servir de base para roteiro de uma série da TV Globo. Pouco se sabe, porque pouco se tem, mas parece que serão quatro músicas utilizadas, a começar por Construção. Manoel Martins é o diretor-geral do projeto. Vamos ver no que vai dar.

Eu, pessoalmente, fico meio cabreiro com essas adaptações. Falando em Chico, e falando em adaptações, em breve devo postar aqui no AC sobre aquele Essa história está diferente, um livro de dez contos baseados em dez músicas do homem – aí vocês vão entender o porquê d’eu ficar meio assim com essas adaptações.

(Tauil)
@tauiltter

FONTE: http://www.artilhariacultural.com/2010/07/12/musicas-de-chico-buarque-podem-virar-serie-na-globo/

22/outubro/2010

“PATHOS: a paixão nas letras de Chico Buarque – uma poética dramática sobre o feminino”*

Resumo: Pathos, o fenômeno teatral dos sentimentos extremos, segundo Aristóteles, na Antiguidade, estaria representado na obra contemporânea do letrista Chico Buarque? O poeta em parte de sua obra, aqui especificamente na que se refere ao universo feminino, descreve o tema da traição, separação, abandono e vingança, numa poética dramática, violenta em seu discurso e potente ritmicamente no uso de aliterações, saturando as palavras. Segundo Emil Staiger, em Conceitos Fundamentais da Poética, Schiller e Nietzsche em seus estudos sobre o trágico, estes seriam temas e características do processo patético sobre o sofrimento e o arrebatamento pela paixão. O presente estudo analisa parte das letras de Chico Buarque para tentar perceber elementos do pathos, pressupondo uma construção da poética do feminino, imbricada nas questões do drama.

Introdução
A obra musical de um poeta possibilita inúmeros caminhos distintos para análise, entretanto, ao examiná-la sob a perspectiva da dramaturgia contemporânea, poucos autores figuram como Chico Buarque no sentido de construção de personagens em diversos segmentos da escrita como o autor literário, compositor, poeta, letrista e dramaturgo, responsável pela obra, talvez, mais relevante e emblemática desde os idos de 1960.
A proposta deste artigo parte de um recorte da pesquisa de mestrado, intitulada “Chico Buarque: espaço subjetivado de uma poética dramatúrgica”, cujo objetivo é perceber a existência de uma perspectiva dramática fundamentada na construção de personagens portadores de motivações, afetados por vontades e conflitos, detentores de ações que, dialeticamente, contrapõem-se e criam tensão.
Este ensaio detém-se nas letras com temática feminina, seja nas que têm a mulher como narradora ou naquelas que têm a mulher como objeto de narração, para tentar perceber o sentido de pathos.
Quanto à metodologia, adota-se o procedimento de identificação e seleção de personagens femininos que, arrebatados pateticamente, perguntam: Quem é esta mulher? Como ela é? Como ela será? Selecionou-se algumas canções que, inclusive, carregam na própria letra estas interrogações. O fenômeno de transformação da mulher na contemporaneidade é considerado mediador nestas questões.

O phatos na submissão cultural e social do feminino
Em “Angélica” (Buarque: 1977), o lirismo surge no âmbito político-social, na emocionante narrativa de uma mãe em busca do corpo de seu filho desaparecido. A descentralização narrativa apresenta-se na alteridade de vozes (Fiorin: 2003) que, dialogicamente se intercalam, ora na primeira pessoa – a mãe desesperada – ora como um narrador que a observa e interroga “quem é esta mulher?” trazendo à tona o trágico desta personagem que, mesmo sendo uma denunciante, é subjugada ao binômio opressor e oprimido. A repetição melódica e métrica reiteram o pathos trágico da canção de ninar que mais parece um lamento estertorante.

“Quem é esta mulher/ Que canta sempre esse estribilho?/ Só queria embalar meu filho/ Que mora na escuridão do mar/ Quem é essa mulher/ Que canta sempre este lamento?/ Só queria lembrar o tormento/ Que fez meu filho suspirar (...)”  (Buarque: Letra e música, 1989)

Em “Mulheres de Atenas” (Buarque: 1976), o poeta apropria-se do arquétipo grego feminino para criar uma perspectiva paralela ao período em que a mulher moderna se restringia a obediência e as habilidades domésticas, renunciando a seus desejos pessoais e profissionais (Biasoli-Alves: 1992). Neste drama épico, não há fim heróico para o servilismo feminino (“vivem pros seus maridos”), porém, enfatiza-se (“mirem-se no exemplo daquelas mulheres”) o absurdo de uma relação baseada na submissão. O autor parece perceber na mulher pós-moderna uma Medéia contemporânea, às avessas, que tem como virtude a vontade particular.
O tema separação será objeto de análise por duas vezes neste artigo, “Atrás da porta” (1972) dramatiza a ruptura de um relacionamento amoroso e dilaceramento do feminino. Quem narra é a própria mulher no exato momento da separação. O conflito não é propriamente o divórcio, mas a perda de auto-estima e dignidade. Apesar de a voz condutora ser a da mulher, sua identidade pessoal é posta em segundo plano. O compositor utiliza a repetição e o uso de aliteração (cama, carinho, coberta/ pêlos, pijama, pés) para potencializar o discurso, violentando o ritmo da palavra. A diluição da identidade (“nos teus pés, ao pé da cama”), a saturação da palavra (“e me arrastei e te arranhei e me agarrei nos teus cabelos”), e o arrebatamento no desejo de vingança (“sujar teu nome, te humilhar, e me vingar a qualquer preço”) imprimem força patética em “Atrás da porta”.
O autor Emil Staiger, discorre sobre o conceito de pathos:

“Nos dicionários encontramos pathos traduzido por ‘vivência, desgraça, sofrimento, paixão’ (...) Cícero opina que a palavra significa ‘doença”, mas prefere usar a expressão ‘perturbação’ (...)” (Staiger: Conceitos fundamentais da poética, 1997).

O pathos no erotismo e na libertação do feminino
Numa segunda instância, “Ana de Amsterdam” (1972-73), inaugura uma fase de libertação, apropriação da própria identidade e posse de seu erotismo (“sou Ana do dique/ sou Ana das loucas/ sou Ana da cama/ sou Ana de Amsterdam”). Transgressora, a mulher perde a obrigatoriedade do casamento e assume-se como mãe, profissional e amante. Ser desejável passa a ser uma opção e não um artifício para casar-se. Nesta mudança de comportamento, a mulher assume sua sexualidade (Biasoli-Alves: 1992).
“Olhos nos olhos” (1976) assim como “Atrás da porta”, tem como arena principal a separação de um casal. Entretanto, esta segunda, descreve o resgate do feminino na dissolução da relação amorosa, seguida por superação (“quando você me quiser rever, já vai me encontrar refeita, pode crer”). A protagonista é atuante, movida pateticamente pela capacidade de reversão; sua polaridade vai da submissão a consciência de si (“quero ver como suporta me ver tão feliz”).
Em “Tatuagem” (1973) e “Eu te amo” (1980) o corpo feminino instaura-se como veículo de afirmação da mulher. A intimidade de um casal constrói a narrativa, sob a ótica da experiência erótica. A amante que na associação de corpos, funde-se a seu homem e, após o orgasmo, entra no doloroso processo de individuação - a separação de corpos prenuncia o sentido do trágico que revela outra temporalidade, a do afastamento físico. “Eu te amo” (1980) esfacela as unidades de tempo e espaço (“ah, se já perdemos a noção da hora”/ “me conta agora como hei de partir”/ “me diz pra onde é que inda posso ir”), homem e mulher confundem-se (“já confundimos tanto as nossas pernas”) assim como o paletó que envolve o vestido e o sangue de um que se perde na veia do outro. A conquista da sexualidade tem seu preço (“fiz tantos desvarios, rompi com o mundo, queimei meus navios”), o de ser único, apesar de estar em dois.
Nietzsche, em O nascimento da tragédia suscita o mito de Dionísio para mencionar a sensação de padecimento no processo de individuação:

“Mitos contam que Dionísio, sendo criança, foi despedaçado pelos Titãs (...) com isso se indica que tal despedaçamento, o verdadeiro sofrimento dionisíaco, é como o estado da individuação, enquanto fonte e causa primordial de todo sofrer, como algo em si rejeitável” (Nietzsche: O nascimento da tragédia, 1992)

A faculdade de na dor física ou moral desencadear êxtase em se sofrer, é inerente na tragédia, um estado de alma de perceber-se passível de existir, mesmo infeliz, que impulsiona a ação e contribui na evolução do conflito (Schiller: 1992).
Schiller situa o pathos acima do instinto humano e localiza a força trágica em um espaço transcendente, onde o sofrimento sublime adquire contornos estéticos de uma poesia do trágico. O personagem revela seu caráter moral, na ambivalência de querer libertar-se da dor e ter o dever de sofrer (Schiller: 1992). Em suma, para Schiller o personagem patético é um estado de ser.

“A primeira lei da arte trágica é a representação da natureza padecente. A segunda é a representação da resistência moral ao sofrimento. (...) Tanto mais triunfante se revela a autonomia moral do homem, tanto mais patética é a representação e tanto mais sublime o ‘pathos’” (Schiller: Teoria da tragédia, 1992)

Nesta perspectiva, pressupondo que este estado de ser, seja um espaço de subjetivação existencial, observa-se nas criações de Chico Buarque, entre 1980 e 1989, traços metafísicos na descrição da mulher que passa a ser o objeto da narração masculina, adquirindo contornos múltiplos.

O pathos na subjetivação existencial
O contemporâneo vai nos falar da mulher que estabelece um pensamento liberal nas questões identitárias, imprimindo hibridismo nos papéis sociais (Biasoli-Alves: 1992). Neste panorama o homem passa a ser o voyeur que descortina a alma feminina. Chico Buarque escreve letras sob o ponto de vista do homem que, explicitamente, manifesta sua incapacidade de absorver a complexidade feminina. A mulher lhe escapa ao entendimento, porém por este motivo, encanta-se como em “Beatriz” (1982), “As vitrines” (1981) e “Valsa brasileira” (1988) que carregam o metafísico – “Beatriz” também pergunta sobre o feminino, mas diferentemente de “Angélica” e “Ana de Amsterdam”, projeta-se no verbo “será”, no que está por vir. O feminino é representado na figura mítica de uma atriz que transita entre a realidade e o mito (“será que é uma estrela/ será que é mentira”). O pathos é transferido para a subjetivação do olhar do homem que vigia esta mulher, seja “catando a poesia” (“As vitrines”) que ela alheia, “entorna no chão” ou vivenciando o mito do eterno retorno (“Valsa brasileira”) ao precipitar o encontro (“te veria confusa por me ver, chegando assim mil antes de te conhecer”) com a mulher amada – o homem capturado pelo prenúncio de uma nova mulher.

Considerações finais
Este trabalho busca identificar uma perspectiva do trágico, em especial, no sentido patético, nas ações e conflitos - a submissão, a sexualidade e a identidade do feminino, indicam uma jornada típica de um herói trágico, da superação a tomada de consciência. Os conflitos estão nas vontades frustradas, na dissolução emocional ou física, mas também alicerçam o caráter moral que, ante o sofrimento, pode desistir ou seguir em frente, porém sem se isentar de existir. Penso que a obra de Chico Buarque não é meramente uma arte poética para as multidões, mas uma arte da minúcia, das idiossincrasias humanas, os interstícios reveladores da intimidade. Chico Buarque, homem que, incomparavelmente, apropria-se da voz feminina, transita nas transformações da mulher, manifestada sem couraças - seus conflitos, dores e orgulhos, a multiplicidade do feminino na descrição de tantas personagens, entretanto vislumbro que todas amalgamadas são uma só – a mulher contemporânea.

* Artigo publicado no Portal ABRACE (Associação brasileira de pesquisa e pós graduação em artes cênicas) - VI Congresso da ABRACE (09 a 12 de vovembro de 2010 - UNESP). Todos os direitos autorais são restritos a autora.



06 de outubro de 2010...
Estou vendo Chico...tomada por um estado de "venturança", afetada por uma ventania, volteio e, volátil, vejo o vivo do ventre do criador. Vislumbro algo que só Chico me dá! Lindo o DVD sobre Chico e Tom. Obrigada por esta singular sensação!

CHICO BUARQUE: O DRAMATURGO DA MULHER CONTEMPORÂNEA - 1970-1989*

O fenômeno de transição da mulher contemporânea parte da submissão ancestral, perpassa a transgressão da liberdade sexual, a dor do divórcio e a conquista da independência. O compositor e dramaturgo Chico Buarque, em parte de sua obra como letrista, parece contextualizar este fenômeno na descrição de figuras femininas que se manifestam por meio de elementos do drama – personagem, ações, tensões e conflitos. Este trabalho pretende observar as composições entre 1970 e 1989, para tentar perceber a existência de uma poética dramática acerca da transformação da mulher contemporânea - da submissão a conquista de sua identidade.

Fenômeno de transformação da mulher contemporânea e sua representação na obra BUARQUIANA:


I – A submissão cultural e social
Mulheres de Atenas - 1976, Atrás da porta - 1972, Angélica - 1977
II – O erotismo e a libertação
Olhos nos olhos - 1976, Tatuagem - 1973, Eu te amo - 1980, Ana de Amsterdam- 1973
III – A subjetividade existencial
As vitrines - 1981, Beatriz - 1982, Valsa Brasileira - 1988

 I - A submissão cultural e social

“Mulheres de Atenas” (1976) - o subjetivismo substituído pela denúncia:

1. Refere-se à submissão cultural das mulheres aos homens
2. Cultura grega como arquétipo
3. Dialética homem/ dominação-mulher/ submissão
4. Características de drama épico
5. Arquétipo da “mulher de verdade” ou “rainha do lar” (“vivem pros seus maridos”); o feminino valorizado na atitude de submissão
6. Não há fim heróico para a mulher servil, só o homem é viril, guerreiro
7. O leitmotiv: “mirem-se no exemplo”, insere na contemporaneidade o absurdo da mulher submetida à dominação masculina.

“Atrás da porta” (1972) – a subjetividade na perda da identidade:

1.Circunstância: ruptura de relacionamento amoroso e dilaceramento do feminino
2.Conflito: perda de auto-estima e dignidade (“E me arrastei e te arranhei e te agarrei pelos cabelos”)
3.Identidade pessoal colocada em segundo plano; voz feminina condutora
4.Repetição (arrastei, arranhei, agarrei/ cama , carinho, coberta/ pêlos, pijama, pés) como característica do processo patético (trágico)
5.Ação: atitudes impulsivas, destrutivas para expressar o desespero diante da separação

II - O erotismo e a libertação do eu-feminino:

“Olhos nos olhos” (1976) – a construção do subjetivismo na descoberta do prazer de estar só:

1.O feminino resgatado na dissolução da relação amorosa
2.A capacidade de superar e recomeçar
3.Término do jugo masculino
4.Mulher atuante (“sem você eu passo bem demais”)
5.Denúncia da opressão e subversão da mesma
6.O abandono seguido de superação da perda (“quando você me deixou...quase enlouqueci...mas como era de costume obedeci”)
7.Superioridade feminina (“quando você me quiser rever...vai me encontrar refeita...quero ver o que você faz”); narração na voz feminina
8.Conquista da identidade (“quando talvez precisar de mim...quero ver o que você diz...como suporta me ver tão feliz”).

“Tatuagem” (1973) e “Eu te amo” (1980) - o corpo como veículo de ser:

1. Lirismo na descrição da mulher “de carne e osso”, com desejos e necessidades afetivas
2. Mulher-amante e não somente esposa e mãe
3. Esfacelamento do ser (associação de corpos no ato sexual); após o orgasmo, início do processo de individuação (sofrimento e dilaceramento de Dionisío)*
4. Idéia de fusão de corpos (“quero ser a cicatriz/ a tatuagem/ a bailarina/ a cruz)
5. Sentido do trágico (pathos) na dor da possível separação; erotismo como fator de dissolução dos seres; libertação da figura “materna” e construção da figura feminina, sexuada.
6. “Me conta agora como hei de partir”, “Me diz pra onde é que inda posso ir”, “Como se nos amamos feito dois pagãos” – revelam a temporalidade no processo de separação de amantes.
7. A mulher é a narradora de sua experiência erótica.

III - A subjetividade existencial

“As vitrines” (1981) – a mulher é subjetivada no olhar masculino:

1.O masculino descortina a multiplicidade feminina
2.Sugere cenicidade na ação de seguir esta mulher, sendo seu vigia, seu voyeur
3.A dialética multiplicidade/ unicidade está nas palavras “vitrines”, “embaraçam”, “letreiros” e na frase “as vitrines te vendo passar” – a mulher é tratada como única e ao mesmo tempo plural
4.“Nos teus olhos também posso ver as vitrines te vendo passar” carrega na subjetividade que rompe com o espaço e torna atemporal, metafísica e mítica a relação homem-mulher
5.A mulher alheia ao encantamento masculino (“passas sem ver teu vigia, catando a poesia que entornas no chão”).

“Valsa brasileira” (1988) – a mulher narrada pela visão mítica

1. Visão mítica, metafísica na descrição da mulher amada
2. Imagens poéticas e subjetivas
3. A mulher é narrada pelo olhar masculino como algo esperado e prenunciado
4.Tempo mítico: o eterno retorno
5.O encontro dos amados num tempo existencial, não cronológico que antecipa, precede, devaneia, transcende, eleva a figura feminina ao status de mulher amada.

Poética do feminino com traços do dramático:

1. A mulher como protagonista;
2. Construção de personagem dramático, preenchido de conflito, afetado por circunstâncias e veículo de ação;
3. Sentido do trágico (nos planos social, erótico e existencial)
4. Características do pathos: arrebatamento/ paixão; desgraça, sofrimento, prazer. Palavra potencializada e saturada → ritmo violento no discurso; repetição. Perda da individualidade; júbilo pela dor; tensão. Ritmo que violenta a palavra. Sentimento de vingança. Consciência de si.

Hipótese: Existência de uma poética dramática, dialógica ,nas letras de Chico Buarque , mais especificamente, no período de 1970-1989 que descreveria o fenômeno de transformações acerca do universo feminino.

Objetivos: Perceber uma poética do feminino , em parte da obra buarquiana , imbricada nas questões sociais, culturais e existenciais ; um estudo sobre a formação do arquétipo da mulher contemporânea. Identificar uma poética dramática e dialógica.

Metodologia: Localização, identificação e seleção de letras com temática feminina; aproximação de letras e personagens femininos para perceber se há dialogismo entre elas.

* Trecho da Comunicação oral no VIII Seminário de Linguagens - UFMT
06 de outubro de 2010. Evoé!


Teatro

CABEÇA ATIVA - SESC ARSENAL
14, 21 e 28/ 09 - 19h - Banco de Textos - Entrada Franca

Tema: Um Estudo Dramatúrgico Sobre a Obra de Chico Buarque
por Maira Jeannyse


SINOPSE: Observando a obra de Chico Buarque, especificamente como letrista, é possível perceber aspectos dramáticos e cênicos – narrativa fundamentada nos conflitos, ações e personagens que, musicalmente, dramatizam circunstâncias, seja no âmbito cotidiano, seja na subjetividade dos sentimentos.
A mediação deste trabalho discorrerá acerca de parte da obra de Chico Buarque, a partir dos critérios de análise textual, para tentar perceber elementos dramatúrgicos que possam constituir algumas de suas letras musicais. O encontro busca inserir a obra buarquiana numa perspectiva dramática, estabelecendo uma narrativa a partir de um discurso dialógico, que perpassa sua obra.
Conceitos como os de Dialogismo de Bakhtin, Dialética de Hegel e Poética de Staiger, mediarão a discussão.
Na busca de um sentido intertextual, além da análise, ao final do encontro objetiva-se criar uma idéia de “arranjo” dramatúrgico ou uma espécie de roteiro partindo da relação entre as letras de Chico Buarque.


“Quando comecei a fazer música profissionalmente, meu primeiro trabalho foi para o teatro (...). Eu comecei a compor canções para teatro, escrever textos para teatro (...) temas compostos para personagens, para situações que não são minhas, não são pessoais (...) uma necessidade dramatúrgica mesmo, que depois permanece (...) acho que ficou sendo um pouco a minha linguagem. “Mesmo que eu escreva hoje uma canção que não tenha nada a ver com o teatro, permaneceu algo dessa experiência no meu processo de criação” .

(Chico Buarque, 1999)













sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Olhos que emergem de Chico*


Chico Buarque deve ter olhado pro mar naquela tarde. Olhos mergulhados, acabou por submergir em meio aos afagos dos transeuntes. Um afago de afogar-se. Tanta atenção sufoca, não agoniza, mas é um subverter-se aos desvãos de uma vida não prevista.

A fama nunca lhe foi inspiração, foi acontecimento dobrado, sorrateiramente, numa esquina nos idos de 64...Como manter a espontaneidade preguiçosa dos jogos de botão?
Privar-se de si, não quis, porém depois teve de partir, ver outros mundos, pois o seu tornara-se aquoso e rasteiro. Como compor impunemente à ignorância trajada de medalhas? Como manter-se calado apesar do fluxo que ensaboava suas entranhas enquanto compunha?
Passos curtos e rápidos o levam para além de Ipanema, onde antes Tom cerrou os olhos cegados pelo sol, veranico fora de época, regado de outros tons. O Rio de Janeiro tem seus mistérios solares, estes que conduzem poetas à inspiração. Num futuro próximo Tom se acostumaria a este sol que sempre o iluminou.
Chico até esquecia de Paris. O Rio embala quem é acostumado a espuma e azul. Tanto mar, tanto mar...Mas o porvir está cada vez mais próximo dele. Dentro em dias, anteciparia, em mil dias, restituído de fôlego, numa precipitação irresistível, aquela composição que não seria a última, mas certamente seria definitiva.
A letra jorrada, fértil, parida num intervalo literário, tinha certa parecença com as linhas escritas em prosa, como se o livro recém escrito carregasse a maternidade dessa canção, pois que sua criação mamava na língua portuguesa, neta de Guimarães, filha de Vinícius e um certo Cartola.
Os olhos recém emergidos do mar traziam ainda resquícios marítimos que embaralhavam a visão e todo sentimento se arremessava no ir e vir da ressaca.
Uma vida toda de palavras deve imprimir-se, amiúde, na palma da mão, e exprimir-se, sem surdina, homericamente no mundo.
Parece ver o que não é visto e com isso, outros virão.Balbucia certos trechos antigos, de outrora, melodias hoje fragmentadas por sua memória, lembranças em vinil.
Ora maravilha-se, ora emparelha-se a certa sensação de ausência presente – novamente um porvir sem identidade pronunciada.
Mas eis que reconhece tal sensação, àquela que o induz a - caneta em punho, escrever! Velha conhecida! Visita incorrigível a da inspiração. Primeiramente desassossega, assombra e conduz ao isolamento, pois que é exigente e requer silêncios e dedicação, depois, exaure e escapa para fora, sequiosa de multidão.


Chico cede. Concede.




Apressa a carreira, despede-se da orla, das memórias de Orly e deixa-se ir, no submergir da folha branca de papel que o espera.

Maira Jeannyse - Cuiabá, janeiro de 2009

* Os direitos autorais deste texto são detidos pela autora.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

CHICO BUARQUE: UMA POÉTICA CONSTRUÍDA NA SEMIOSFERA?*


Este ensaio pretende estudar algumas letras musicais de Chico Buarque de Hollanda, em particular aquelas que referem-se à classe operária brasileira e que, a princípio, parecem integrar-se no espaço subjetivado de criação. A pesquisa pressupõe que haja uma perspectiva que antecede a própria narrativa das letras, uma espécie de espaço gerador, onde as letras musicais existem numa relação sistêmica.
O conceito de Semiosfera de Iúri Lótman pensa a cultura como um universo de estruturas organicamente integradas por mecanismos pensantes. Lótman se perguntava como uma cultura compreende uma outra, se expande e permanece integrada a ponto de constituir sistemas. Nesse sentido, a Semiosfera é um espaço que possibilita uma existência por meio da diversidade, configurando-se através da comunicação, da linguagem e, conseqüente desenvolvimento da cultura.
Lótman em sua investigação acerca da cultura transitou por outro campo teórico, o do conceito de Dialogismo de Mikhail Bakhtin para desenvolver seus estudos sobre semiosfera.
Mikhail Bakhtin, filósofo russo e teórico da linguagem, circunscreveu e examinou a linguagem sob diferentes ângulos, inserindo a língua num panorama diversificado de manifestações, imprimindo uma propriedade intrínseca – a o Dialogismo. A teoria de Bakhtin discorre sobre a idéia de tessitura conjuntiva, ou seja, a visão de conjunto de um texto, numa ótica de interação do discurso (BARROS, 2003).
No caso desta pesquisa, torna-se neste momento necessário aplicar esta teoria de visão de conjunto à obra pesquisada, a das letras de Chico Buarque que carrega, supostamente, certa alteridade em sua ossatura, uma aparente interdiscursividade nas canções.
Em parte da obra de Chico Buarque é possível identificar desdobramentos de tipos como os da classe operária, dos marginalizados, das mulheres abandonadas, ou até mesmo dos sambistas e malandros da boêmia. Um atravessamento de arquétipos e situações que, apesar de existirem na diversidade de cada canção, parecem criados numa espécie de semiosfera, espaço onde a heterogeneidade possibilita o dialógico. O diálogo que precede e gera a linguagem.
A responsividade narrativa aparece como fator dialógico entre partes diferentes – as letras possuem vida própria, isoladamente, porém ao aproximá-las é possível, além de distingui-las, identificar semelhanças e até mesmo recorrência em seus temas, tipos e conflitos. Pedro de Pedro Pedreiro espera o filho que vai nascer e o operário de Construção, despede-se do filho antes de sair para o trabalho. Este mesmo operário civil tropeça, flutua no ar e cai, morrendo na contramão, assim como em Deus lhe pague a letra cita “os andaimes pingentes, que a gente que cair”. Há uma ação que se constrói continuamente, como parte integrante de um único organismo, neste caso, a jornada de um herói cotidiano, que morre anonimamente.
As letras de Chico Buarque narram a ação de personagens que parecem desdobrar-se ou dialogar entre si, numa relação interdiscursiva, assim como nos revela Bakhtin sobre a responsividade narrativa - uma espécie de conversação intertextual, onde a alteridade é o acento do conceito de dialogismo, ou seja, todo discurso é perpassado por outro discurso (FIORIN, 2006).
Este discurso dialógico, polifônico que perpassa parte da obra de Chico Buarque, se constrói no espaço subjetivado de criação, isto é evidente, porém potencializando a discussão, caberia perguntar se este espaço é o semiosférico? No sentido de ser um espaço que compreende uma e outra letra?

O escopo deste ensaio parte deste questionamento, o de que existe uma estrutura narrativa que perpassa algumas letras, constituída pela heterogeneidade e gerada semiosfericamente.
Construção” descreve, assim como “Pedro Pedreiro” a jornada de um trabalhador. Em “Pedro Pedreiro”, Pedro, espera o aumento, enquanto sua mulher espera um filho para esperar também; em “Construção”, o operário, despede-se de sua mulher, de seus filhos e não espera como Pedro; segue como máquina, parece engolido pela engrenagem, tropeça e morre publicamente.
Diante desta perspectiva, de interpenetração, o operário de Construção pode ser tudo, até mesmo um desdobramento de Pedro de Pedro Pedreiro.
A suposição é sobre a existência de uma poética ou um pensamento narrativo que talvez inaugure uma espécie de construção textual em letras musicais, no caso, de Chico Buarque. O debate constrói-se entre os conceitos de dramaturgia e de enunciado dialógico, problematizado na suposição deste organismo narrativo, onde se intui uma relação entre personagens buarquianos.
O conceito de semiosfera vem contribuir nesta pesquisa.

Maira Jeannyse - Cuiabá, julho de 2010.
Orientação: Profa Maria Thereza Azevedo.

*Este é um fragmento do artigo de conclusão para a disciplina Estudos de Cultura I - Módulo Semiótica da Cultura (Profa. Dra. Lucia Helena Possari - UFMT). Todos os direitos deste texto, reservados a autora.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Chico, meu caro


Uma relação sui generis sempre foi a minha com Chico.
Na verdade, fui imersa na obra de Chico continuamente, desde "minininha", entretanto, foi na maturidade que deixei de ouvi-lo para, enfim, escutá-lo. E dar-me ao luxo de dialogar com sua obra.
Mas comecemos pelo início de tudo...Os Saltimbancos foi minha primeira peça teatral. Assisti no Canecão e, lembro de Miúcha com seu sorriso brejeiro, no proscênio, cantando, enquanto eu, guria de uns oito anos, era levada pelas mãos geniais de Chico, para as entranhas do teatro. Dez anos depois, lá estava eu começando minha vida nos palcos, sorrateiramente escolhendo meu destino. Menos tempo ainda, lá estava eu, apaixonada por gatos, burros, galos...Sem falar de minha estréia no teatro, interpretando uma gata angorá que, ao fugir de casa, encontra amigos num beco abandonado  (lembra alguma canção? "o meu mundo era o apartamento...)
Quando tinha 16 anos fui estudar música, levei a sério, virei clarinetista, depois oboísta, spalla, coisa que só quem já viveu sabe o que é vestir de preto, de gala, pra apresentar-se na Sala Cecília Meireles...Pois bem, na orquestra, tinha um amigo, Moisés, muito querido, que toda tarde de ensaio, quando eu pisava no palco, ele começava a tocar João e Maria em seu oboé...Novamente Chico...Era delícioso ser recebida como "a princesa" do herói!
Quando fui, num arroubo calculado, prestar a seleção para o bacharelado da UniRio, em Cênicas, surpreendida pelo desafio da prova específica, em ter de cantar uma canção, sapequei Todo sentimento e ali, naquele exato momento, senti que havia ingressado na faculdade! Se a voz foi condizente, não sei, mas a emoção foi legítima!
Já na faculdade, minha melhor amiga, Juliana, uma linda morena do Maranhão, tomada de paixão por aquele que seria seu marido, cantava sem parar Futuros Amantes!
Cedi, aquiesci, sorri e deixei que Chico entrasse de vez em minha vida.
Hoje permito que esta obra me acompanhe, agora intencionalmente, para onde vou, em minha pesquisa, em minhas leituras, neste blog, nos matizes de azul que me levam rumo a Chico.
Porém devo alertar: Chico, meu caro, já estamos "avec' e você nem sequer sabe! Salut!

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Bibi Ferreira, a Joana


Para um amigo:

-Você ainda não viu Bibi Ferreira interpretando Joana?
É muito "lâcher prise au théâtre", mon cher...

sexta-feira, 30 de julho de 2010

UMA POÉTICA INTERDISCURSIVA E DRAMÁTICA NAS LETRAS MUSICAIS DE CHICO BUARQUE*



Examinando a dramaturgia contemporânea, poucos autores figuram como criadores múltiplos no sentido de penetração em diversos segmentos da escrita como o autor literário, compositor, poeta, letrista e dramaturgo, Chico Buarque de Hollanda, responsável pela obra, talvez, mais relevante e emblemática desde os idos de 1960.
Este é um trecho do artigo apresentado como comunicação oral na III Jornada Latino Americana em Estudos Teatrais, realizada em junho, em Blumenau, cuja proposta é a observação de algumas letras musicais de Chico Buarque de Hollanda, para tentar perceber a existência de personagens dramáticos em sua obra, além de uma espécie de espaço subjetivado de uma poética ou pensamento narrativo, intersticial, interdiscursivo, fruitivo que geraria as letras e que, de certa forma, as alimenta, as aproxima, reverbera e cria desdobramentos entre seus personagens.
Parte-se do pressuposto de que existe na sua obra uma espécie de tessitura dramatúrgica com personagens que parecem dialogar entre si, estabelecendo uma suposta narrativa dramática, imageticamente cênica, a partir de uma espécie de “matriz dramatúrgica”.
Chico Buarque carrega em sua obra musical personagens do cotidiano, como operários, sambistas, malandros, mulheres do povo, pivetes que apesar de serem particulares em sua construção, desfilam características em comum, como se entrelaçados por uma poética interdiscursiva e dramática. As letras, numa leitura partindo do dramático, possibilitam uma visualização cênica. Citando como exemplo, “Construção” (BUARQUE, 1971), o autor revela a trajetória dramática, de um operário que numa construção, ergue a cada estrofe e a cada bloco, uma narrativa, que parece empurrá-lo rumo às alturas de um prédio e à sua queda final. O autor se utiliza de um recorte da vida cotidiana, para narrar em ações, a tragédia de um personagem anônimo. Chico Buarque nem sequer o nomeia, o que sugere que o conflito dramático é mais relevante. Entretanto, inserindo o personagem Operário numa perspectiva de tessitura dramática, que antecede inclusive a própria obra “Construção”, seria possível vislumbrar-se a gestação deste personagem.
Em “Pedro Pedreiro” (BUARQUE, 1965), há a presença subjetivada deste trabalhador que quase uma década depois, intui-se, se reverbaria no operário de construção. Como se Pedro Pedreiro se desdobrasse e ressoasse em Operário. Se pensarmos ambos os personagens sob esta ótica descentralizada (o sujeito deixando de ter papel central, mas pluralizando-se), intui-se um enunciado poético construído na alteridade.
“Construção” descreve assim como “Pedro Pedreiro” a jornada de um trabalhador. Em “Pedro Pedreiro”, Pedro, espera o aumento, enquanto sua mulher espera um filho para esperar também; em “Construção”, o operário, despede-se de sua mulher, de seus filhos e não espera como Pedro; segue como máquina, parece engolido pela engrenagem, tropeça e morre publicamente.
Mikhail Bakhtin, filósofo russo e teórico examinou a linguagem sob diferentes ângulos, inserindo a língua num panorama diversificado de manifestações, imprimindo uma propriedade intrínseca - o Dialogismo - que aqui, se configura como um dos elementos operatórios, além do conceito de drama, para a análise da obra buarquiana. A teoria de Bakhtin discorre sobre a idéia de tessitura conjuntiva, ou seja, a visão de conjunto de um texto, numa ótica de interação do discurso (BARROS, 2003).
Para Bakhtin um discurso origina-se em outro discurso, sendo, portanto, uma réplica de duas vozes enunciativas. A heterogeneidade de vozes revela posições que preconizam um dialogismo dentro de um enunciado, afetando inclusive o conceito de sujeito que ao ser multiplicado, passa a ser um sujeito histórico e ideológico (BARROS, 2003). Nesta perspectiva talvez estejam os personagens buarquianos, entrelaçados em sua construção de sujeito social.
A proposta do filósofo Mikhail Bakhtin revela que boa parte das opiniões dos indivíduos é social o que imprime uma responsividade narrativa, uma espécie de conversação intertextual, onde a alteridade é o acento do conceito de dialogismo, ou seja, todo discurso é perpassado por outro discurso - a interdiscursividade (FIORIN, 2006).
O debate constrói-se na suposição de uma poética, dramatúrgica,  criada no espaço subjetivado da criação, que geraria as letras musicais e que criaria ressonâncias entre os personagens e suas ações dramáticas. Não se ignora a existência isolada das letras musicais de Chico Buarque, apenas vislumbra-se uma relação destas  numa matriz dramatúrgica.

Maira Jeannyse - Cuiabá, maior de 2010.
Orientadora: Profa Dra. Maria Thereza Azevedo

* Este é um fragmento do artigo apresentado na III Jornada Latino Americana em Estudos Teatrais, em formato de comunicação oral. Todos os direitos autorais deste artigo são detidos pela autora.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

“KIESLOWSKI: A TRILOGIA COMO POÉTICA DA INEVITABILIDADE EXISTENCIAL”*

"Heaven" - Giovanni Ribisi/ Cate Blanchett
"Bleu" - Juliet Binoche
"Kieslowski: a trilogia como poética da inevitabilidade existencial"   

RESUMO: O presente ensaio analisa parte da filmografia do cineasta Krzysztof Kieslowski, em particular, a “Trilogia das cores” e sua obra inacabada “Paraíso, Purgatório e Inferno”, trilogia baseada na Divina Comédia de Dante Alighieri. O ensaio discorre sobre uma poética que se constrói no formato de trilogia e que mensura a inevitabilidade da existência, tema mais presente em sua obra.

O cineasta Kieslowski gostava de trabalhar por ciclos.
Iniciou sua carreira como documentarista em plena ditadura na Polônia. Em 1970 decidiu investir na verdade por meio da narrativa ficcional e para tal, compunha seus roteiros como um Dostoievski moderno – descrevia a vida privada, revelando em cada take o absurdo existencial, o aprisionamento de seus personagens convulsionados a uma existência de limitações e cenários que se atravessam.
Muitos de seus roteiros apresentam os mesmos atores, os mesmos cenários e situações, porém em narrativas diferentes. A poética se desenvolve no âmbito da composição em trilogia, onde os enredos e temas abordados adquirem caráter conceitual no encadeamento do que é visível e o que é invisível dramaticamente.
Com a Trilogia das Cores, série de três filmes – Bleu, Blanc e Rouge – Kieslowski parte das cores da bandeira francesa e discute o pertencimento, em tempos modernos, de seus personagens nas questões referentes à liberdade, igualdade e fraternidade que permeiam a França.
Após anunciar sua aposentadoria, no final das filmagens da Trilogia das cores, Kieslowski, a convite de seu co-roteirista e colaborador, Krzysztof Piesiewics, inicia outra trilogia, esta inspirada na obra literária Divina Comédia de Dante Alighieri. A trilogia se dividiria em Paraíso, Purgatório e Inferno. Entretanto, esta nunca se realizaria com sua presença – em 1996, Kieslowski vem a falecer, aos 54 anos, vítima do coração. Os roteiros finais ficaram inacabados, com exceção do primeiro, Paraíso.
Tom Tykwer, diretor alemão de Corra Lola, corra, assume a primeira parte da trilogia e filma Paraíso, tendo no elenco a atriz inglesa, Cate Blanchett e o jovem ator estadunidense de ascendência italiana, Giovanni Ribisi.
Trata-se aqui de manter na ossatura do roteiro a perspectiva de trajetória existente na obra Divina Comédia de Dante Alighieri – não se configurando como uma adaptação da obra literária, da jornada de Dante e sua amada, Beatriz, entretanto a perspectiva é a mesma quando seus protagonistas, Felippo e Phillippa embarcam numa viagem existencial, mensurada pela inevitabilidade.
Assim como Julie de Bleu, Philippa de Paraíso foge não em busca da liberdade, mas sim do conformismo em aceitar os desmandos, as injustiças e traições da vida e rende-se ao inevitável de ser, no sentido mais profundo da palavra.
Julie (Bleu), diante da perda de toda a sua família, marido e filha, em um acidente de carro, rompe com todas as convenções: não chora, desfaz-se de todas os objetos ou lembranças, vende sua casa, incinera seu passado - demonstra querer reconstruir sua vida a partir de uma ambígua situação, a de não abrir-se mais ao mundo. Kieslowski parece querer nos dizer que não há liberdade total se estivermos vulneráveis ao mundo, às relações.
Na segunda parte da Trilogia das cores - Blanc, novamente o impasse no âmbito do existencial, porém neste roteiro, transposto a situação precária de ser um estrangeiro, de não pertencer pátria escolhida e, minimamente, o de não ser compreendido devido a diferença de idiomas. Assim como a obra de Camus, o estrangeirismo deixa de ser uma situação e passa a se configurar como um drama existencial, de estado de sítio, exílio e questionamento sobre o que vem a ser igualdade.
A descoberta da desigualdade em Blanc, pelo personagem Karol Karol, potencializam a poética existencial de Kieslowski na terceira parte da trilogia, Rouge, no encontro de todos os protagonistas dos três filmes, num naufrágio, quando se cruzam, quase se reconhecem em sua miséria humana e, como espectadores prevemos uma nova jornada existencial, a partir dos sobreviventes de uma catástrofe.
Em Rouge, Valentine, jovem modelo, atropela um cão. Presta socorro ao animal e decide devolvê-lo a seu dono, porém este, um juiz que tem como hobby ouvir inadvertidamente as ligações telefônicas de seus vizinhos, não se interessa pelo destino de seu cão. Kieslowski apresenta um personagem à margem da sociedade que não deseja misturar-se e nem participar das convenções sociais, porém parece interessar-se pelo alheio, pela perversidade de seus iguais.
É preciso se conhecer o mundo para negá-lo.

Kieslowski constrói uma metáfora da jornada existencial, mais precisamente sobre a inevitabilidade de ser, carregando em sua poética certos elementos místicos e por vezes niilistas, numa narrativa que beira a fronteira do invisível e do visível. Seus personagens pouco falam e são essencialmente seres repletos de sentimentos e conflitos interiores, invisíveis. As situações são evidentes, visíveis, pequenas emboscadas para o instauro da existência de seus personagens. Torna-se vital desconstruir-se e reconstruir-se no estado limite das coisas. Kieslowski em sua realização cinematográfica, particularmente em sua obra desenvolvida em trilogias, insere a idéia de temporalidade e espacialidade como fatores de ação contínua, uma espécie de simulacro para a hipótese de que tudo é parte de um imensurável encadeamento existencial.
A conformação em trilogia estabelece uma relação entre seus filmes, propondo uma análise dilatada de sua obra - o trânsito das situações, ações e personagens parece estar no campo da predestinação onde é preciso cumprir seu destino, aceitar o inevitável, mesmo que a salvação seja a conseqüência da imolação da individualidade.
Compreender a conformação em trilogia, adotada tantas vezes por Kieslowski, como um expediente narrativo ou um recurso de carpintaria poética é submergir a complexidade proposta pelo cineasta. É buscar respostas onde não se pergunta nada, num universo em que o cinema é poesia e basta.

Referências:

SAVERNINI, Erika. Kieslowski no paraíso. Trabalho apresentado no Núcleo de Comunicação Audiovisual, XXVI Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Belo Horizonte/MG, 02 a 06 de setembro de 2003.Sugestão de site sobre Trois Couleurs: http://www.screamyell.com.br/secoes/trilogia.html

SAVERNINI, Erika. Índices de um cinema de poesia: Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski. Belo Horizonte: Escola de Belas Artes da UFMG, 1998.


Maira Jeannyse, Cuiabá, 28 de julho de 2010.

* Este é um fragmento do ensaio de conclusão da disciplina Arte e subjetividade (Profa. Dra. Maria Thereza Azevedo/ UFMT). Todo os direitos autorais deste texto são detidos pela autora.

terça-feira, 27 de julho de 2010

“MINHA HISTÓRIA” DE CHICO BUARQUE DE HOLLANDA


Minha História de Chico Buarque – uma analogia a hinterlândia portuária"* 



RESUMO: Este ensaio parte do conceito de hinterlândia portuária, ambiência onde se configura o consumo e a circulação de serviços, translocalizando esta teoria para o espaço subjetivado da letra musical, Minha História, de Chico Buarque de Hollanda. O ensaio discorre sobre a idéia de como se faz um produto, na perspectiva da subjetivação, seja um filho ilegítimo, à revelia, em busca de sua história ou origem.

Interpelar pelo passado onde a existência de um pai desconhecido, marinheiro, figura transitória dos portos, é a ausência mais presente e a maior certeza de um futuro incerto, é verbo que habita o narrador de Minha História. É o ponto de partida de uma narrativa musical que revela a cada estrofe não apenas um malandro da zona portuária, mas um personagem delimitado por uma ambiência onde tudo se integra a uma única geografia – o porto. Espaço dos embarques e desembarques, a região das relações migratórias e líquidas.
Etimologicamente, o termo hinterlândia é aplicado pela geografia como território contíguo à costa marinha, sendo a descrição de uma região servida por um porto ou via navegável. Configura-se como um lugar central de concentração de oferta de bens e serviços para uma determinada questão regional.
As atividades desenvolvidas numa hinterlândia geram um sistema que possibilita o abastecimento das metrópoles, prestando um serviço confluente de consumo e produtividade.
No entanto, poucas são as vantagens profissionais para os habitantes de uma hinterlândia – geralmente marinheiros, estivadores, ou mais precisamente, operários do porto, figuras marginalizadas e ignoradas pelas cidades médias ou globais.
Minha história (1970) trata-se de um narrativa biográfica de indivíduos que, se na canção são ficcionais, na vida cotidiana do cais do porto, existem e são, insonemente, o resultado do meio em que vivem. Como náufragos em terra firme, ignorados e deslocados – o mar os habita como um vão, um hiato – no território “entre-lugar” daqueles que se configuram como seres abismais, atravessados pela paisagem – a hinterlândia portuária.
A canção numa leitura interpretativa, observada pelos critérios dramatúrgicos, desvenda a cada estrofe a história do malandro “Jesus” e sua jornada em busca de sua identidade. Como seu homônimo, ele inquire sobre o porquê de ter sido abandonado por seu pai, vivenciando uma ação conflituosa, a de ser um bastardo, abandonado a própria sorte. O conflito se estabelece no campo do consumo, pois sentir-se um filho da circulação de serviço é perceber-se como produto descartável. Quase num trocadilho: o que o consome é a sua existência pelo consumo.
A inquietação que o perpassa opera-se no âmbito espaço-temporal, pois se verifica especificidades de sua personalidade atreladas à ambiência que o circunda e ao passado que se apropria do presente e impede uma possibilidade de futuro.
O porto, arena principal de Minha História, é cenário recorrente na obra de Chico Buarque, criando interfaces trágicas que estabelecem vínculos narrativos de inter-relação entre personagens que esperam ou que partem encerrados em circunstâncias de abandono e solidão, e conflitos de revolta e desesperança.
Chico Buarque parece deslindar o porto ao amalgamar o conflito de seus personagens, habitantes ou passageiros da zona portuária, construindo uma alteridade narrativa, onde o comércio é circunstancial, existencial e experiencial – o corpo é produto transitório, uma falsa efemeridade que apazigua os descompromissados, sacia, alimenta e constrói o desejo, igualitariamente aos contêineres saturados de objetos e produtos que constituem a logística do consumo.
O sujeito da “hinterlândia buarquiana” é resultado das condições que o constituem, é produto dialético, no confinamento espacial e na liberdade existencial de ser prisioneiro em-si:

“(...) Minha mãe com o olhar cada dia mais longe

Esperando, parada, pregada na pedra do porto (...)”

Jesus, o malandro de Minha História, torna-se objeto sim, mas de subjetivação, pois o porto que o habita é da ordem da estética existencial, força motriz de sua biografia, da concepção silenciosa em meio ao cheiro do mar, a formação identitária num cabaré entre o acalanto das prostitutas e a ironia de seu nome, a maturidade de bar em bar, entre ladrões e amantes, na via crucis do copo e da cruz de ser porque se está.
O protagonista de Minha História parece ter sido gerado na relação de troca e serviço, feito produto gerado pelo extra-regional, aquilo que está fora do regional (neste caso, o marinheiro) que, detém poderosa concentração de oferta de serviço para uma hinterlândia regional (a mãe do protagonista). Estabelecendo-se assim uma espécie de relação comercial – de controle econômico e político sobre o espaço regional.
a canção estabelece a relação de interação espacial – o marinheiro que vem de longe, de outro lugar, assim como uma escala extra-regional, aproxima-se da mulher, que pode ser vista como uma metáfora a escala regional, e após “abastecê-la”, ou seja, cumprida sua função de “provedor”, parte, sem saber que gerara ali um produto desta interação entre bens e serviços.
Este produto é mediado pelo porto, aqui visto como um espaço subjetivado da hinterlândia, onde se constrói o desejo e se materializa o consumo, a todo e qualquer custo:



“(...) Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo

Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz

Me conhecem só pelo meu nome de Menino Jesus”.


Maira Jeannyse - Cuiabá, maio de 2010.

* Este é um fragmento do ensaio de conclusão para a disciplina Tópicos Especiais em Comunicação e Mediações I (Prof. Dr. Yuji Gushiken - UFMT) cujos direitos autorais são detidos por sua autora.












“A MORTE EM VENEZA DE LUCHINO VISCONTI: UMA ADAPTAÇÃO DIALÓGICA E INTERTEXTUAL”*

Resumo: O presente ensaio analisa o processo dialógico e intertextual na adaptação cinematográfica, de Luchino Visconti, de A Morte em Veneza, partindo da obra literária de Thomas Mann e na biografia do compositor Gustav Mahler – uma construção intertextual imanada nas questões literária, poética, estética e biográfica.

Gilles Deleuze, em seu livro A Imagem-Movimento (DELEUZE,1983) evidencia a relação de fluxo narrativo e pensamento nas escolhas de continuidade e cortes – o pensamento deslocado em termos áudios-visuais. A sensação do tempo passa a ser o da duração vivenciada.
Neste sentido a dialogia de linguagens, por meio da adaptação, contribui na ampliação da narrativização.

O presente ensaio tem como objeto de análise a adaptação cinematográfica de A Morte em Veneza de Thomas Mann, pelo cineasta italiano Luchino Visconti que, ao roteirizar cenas de travessia, entre o poético, o estético e o biográfico, utiliza o conceito de dialogismo.

1. A Morte em Veneza de Thomas Mann – uma obra literária sobre a subjetivação da arte:

A Morte em Veneza, literatura publicada em 1913 e de autoria de Thomas Mann, é uma obra que investe num retrato dicotômico, sob o ponto de vista de um artista que, numa travessia experiencial é atravessado pela decadência da aristocracia, em plena Belle Époque e pela imponderabilidade do Belo, mediadas pela crise de criação.
Thomas Mann insere em seu fazer narrativo o espaço da linguagem e a crise vivida pelo homem na passagem do século XIX ao início do século XX, trazendo para cena de seus livros o mal-estar de uma civilização. 
Em Mann ser artista, na sociedade aristocrática, é estar exposto ao exotismo e a depravação, ao sensual e ao perigoso, oprimido nas rígidas normas da boa conduta. Assim, fatalmente, seus personagens existem em meio ao desvio, a inquietação e na colisão entre duas realidades – a do Belo, subjetivação da arte, e a do Grotesco, a realidade da vida prosaica.
Em A Morte em Veneza, o protagonista Gustav von Aschenbach está em busca de um lugar que o retire da mediocridade eminente a que está sujeito um grande artista que alcançou a maturidade da idade e de sua arte.
Escolhe Veneza, cidade de canais e pontes, trançada de vielas pelas quais ainda não saberia que perseguiria um jovem polonês, Tadzio e se defrontaria com a doença, a decomposição e a morte. A travessia se faz perceptível como experiência transformadora, como o lugar do entre que desmascara a vida e seus perigos.
Em A Morte em Veneza é esboçado desde as primeiras cenas o caminho abismal de Aschenbach através de uma série de figuras sombrias que o acompanham e pressagiam uma travessia fatal. O velho janota, o gondoleiro e o cantor bufo são aparições de duvidoso aspecto humano que conduzem Aschenbach a travessia existencial que será em direção à descoberta de si.

2. A Morte em Veneza de Luchino Visconti – uma obra dialógica sobre literatura, poética, estética e biografia:

Luchino Visconti articula em sua adaptação cinematográfica de A Morte em Veneza, a teoria da intertextualidade, com raízes no “dialogismo” de Bakhtin, onde enfatiza uma abordagem não fidedigna ao texto original, mas imbricada na construção híbrida – desterritorializando e redimensionando o discurso antes meramente literário.
O enredo original da novela de Mann consiste na jornada do escritor Gustav von Aschenbach a um balneário em Veneza, onde intenciona descansar de sua produção literária e de uma iminente crise criativa.
Visconti constrói um roteiro baseado no dialogismo entre a obra original de Mann e a biografia do compositor Gustav Mahler, estabelecendo um cruzamento entre ficção e realidade. O protagonista Gustav Von Aschenbach é um desdobramento do próprio Gustav Mahler, compositor do Adagietto, trilha que conduz o personagem descrito por Mann e criado por Visconti. Na obra literária o protagonista é um escritor; na cinematográfica, é um compositor erudito que assim como Mahler, sofre a perda de uma filha, prematuramente, o que o leva a desmesura das pessoas acossadas pelo sofrimento. Mahler compunha sobre a morte, tema recorrente em sua obra.
Mann constrói uma teoria acerca da “doença como metáfora” em A Morte em Veneza - a epidemia de cólera revela a face da doença, que traz a morte e transforma Veneza numa cidade decadente, infectada, vazia e cheia de labirintos fétidos e sombrios - assim como uma doença moral que cerceia, embota e desfigura.
Visconti vê na patologia da paixão de Aschenbach por Tadzio, a subversão dos valores sociais – Aschenbach ao perceber-se refém do tempo perdido, tenta reparar a decomposição seja na ambiência de sua criação, seja na ambiência geográfica, ou até mesmo no âmbito físico, numa travessia fatal em direção à descoberta de si.
A primeira seqüência de A Morte em Veneza de Visconti desloca a paisagem marítima ao plano da subjetivação, cadenciando, à deriva, Aschenbach – um estrangeiro, de aparência frágil e solitária, imerso na fotografia saturada de Veneza, em tomadas longas, contemplativas, mediada pelo mar que atravessa e desvia Aschenbach a uma experiência transformadora, de delicadeza e eternidade. A travessia é estética, poética, biográfica e fatal.
O protagonista de Visconti não se limita as lembranças de fracasso em meio a um concerto ou a sua vida conjugal, o belo que o assombra só pode existir na imperfeição, na descoberta da maturidade ao desejar o jovem.
Tadzio é a revelação crepuscular do belo e quando, finalmente, Aschenbach, alegoricamente rejuvenescido, vislumbra a silhueta de Tadzio, em meio ao mar, ele compreende que a subjetivação é inalcançável, que não é ele, criador, que atravessa a arte, mas a arte que o atravessa.



Aschenbach morre.



Visconti viu nesta ambivalência Mahler-Aschenbach a arena principal para sua adaptação – a ferramenta dialógica, aqui com propriedade sígnica, aproxima e afeta dois universos aparentemente distintos, a descrição literária ficcional de uma artista e sua arte e, a arte na vida real de um artista.
A Morte em Veneza de Visconti embebeda-se no hibridismo contemporâneo, extrai da teoria de Bakhtin a voz polifônica, heteroglóssica, dialógica e intercomunicacional para sua adaptação, translocando o conceito restritivo de “retrato fiel de uma obra” ao universo da obra, como discurso plural e conceitual.

Maira Jeannyse - Cuiabá, maio de 2010


* Este é um fragmento do ensaio apresentado para a conclusão da disciplina Tópicos Especiais - Poéticas Contemporâneas (Prof. Dr. Robert Stam - NYU), cujos direitos autorais são detidos por sua autora.