sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Olhos que emergem de Chico*


Chico Buarque deve ter olhado pro mar naquela tarde. Olhos mergulhados, acabou por submergir em meio aos afagos dos transeuntes. Um afago de afogar-se. Tanta atenção sufoca, não agoniza, mas é um subverter-se aos desvãos de uma vida não prevista.

A fama nunca lhe foi inspiração, foi acontecimento dobrado, sorrateiramente, numa esquina nos idos de 64...Como manter a espontaneidade preguiçosa dos jogos de botão?
Privar-se de si, não quis, porém depois teve de partir, ver outros mundos, pois o seu tornara-se aquoso e rasteiro. Como compor impunemente à ignorância trajada de medalhas? Como manter-se calado apesar do fluxo que ensaboava suas entranhas enquanto compunha?
Passos curtos e rápidos o levam para além de Ipanema, onde antes Tom cerrou os olhos cegados pelo sol, veranico fora de época, regado de outros tons. O Rio de Janeiro tem seus mistérios solares, estes que conduzem poetas à inspiração. Num futuro próximo Tom se acostumaria a este sol que sempre o iluminou.
Chico até esquecia de Paris. O Rio embala quem é acostumado a espuma e azul. Tanto mar, tanto mar...Mas o porvir está cada vez mais próximo dele. Dentro em dias, anteciparia, em mil dias, restituído de fôlego, numa precipitação irresistível, aquela composição que não seria a última, mas certamente seria definitiva.
A letra jorrada, fértil, parida num intervalo literário, tinha certa parecença com as linhas escritas em prosa, como se o livro recém escrito carregasse a maternidade dessa canção, pois que sua criação mamava na língua portuguesa, neta de Guimarães, filha de Vinícius e um certo Cartola.
Os olhos recém emergidos do mar traziam ainda resquícios marítimos que embaralhavam a visão e todo sentimento se arremessava no ir e vir da ressaca.
Uma vida toda de palavras deve imprimir-se, amiúde, na palma da mão, e exprimir-se, sem surdina, homericamente no mundo.
Parece ver o que não é visto e com isso, outros virão.Balbucia certos trechos antigos, de outrora, melodias hoje fragmentadas por sua memória, lembranças em vinil.
Ora maravilha-se, ora emparelha-se a certa sensação de ausência presente – novamente um porvir sem identidade pronunciada.
Mas eis que reconhece tal sensação, àquela que o induz a - caneta em punho, escrever! Velha conhecida! Visita incorrigível a da inspiração. Primeiramente desassossega, assombra e conduz ao isolamento, pois que é exigente e requer silêncios e dedicação, depois, exaure e escapa para fora, sequiosa de multidão.


Chico cede. Concede.




Apressa a carreira, despede-se da orla, das memórias de Orly e deixa-se ir, no submergir da folha branca de papel que o espera.

Maira Jeannyse - Cuiabá, janeiro de 2009

* Os direitos autorais deste texto são detidos pela autora.

Um comentário:

  1. Me comoveu a sensibilidade do seu olhar. Texto magnífico. Parabéns pelo blog!

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