quarta-feira, 28 de julho de 2010

“KIESLOWSKI: A TRILOGIA COMO POÉTICA DA INEVITABILIDADE EXISTENCIAL”*

"Heaven" - Giovanni Ribisi/ Cate Blanchett
"Bleu" - Juliet Binoche
"Kieslowski: a trilogia como poética da inevitabilidade existencial"   

RESUMO: O presente ensaio analisa parte da filmografia do cineasta Krzysztof Kieslowski, em particular, a “Trilogia das cores” e sua obra inacabada “Paraíso, Purgatório e Inferno”, trilogia baseada na Divina Comédia de Dante Alighieri. O ensaio discorre sobre uma poética que se constrói no formato de trilogia e que mensura a inevitabilidade da existência, tema mais presente em sua obra.

O cineasta Kieslowski gostava de trabalhar por ciclos.
Iniciou sua carreira como documentarista em plena ditadura na Polônia. Em 1970 decidiu investir na verdade por meio da narrativa ficcional e para tal, compunha seus roteiros como um Dostoievski moderno – descrevia a vida privada, revelando em cada take o absurdo existencial, o aprisionamento de seus personagens convulsionados a uma existência de limitações e cenários que se atravessam.
Muitos de seus roteiros apresentam os mesmos atores, os mesmos cenários e situações, porém em narrativas diferentes. A poética se desenvolve no âmbito da composição em trilogia, onde os enredos e temas abordados adquirem caráter conceitual no encadeamento do que é visível e o que é invisível dramaticamente.
Com a Trilogia das Cores, série de três filmes – Bleu, Blanc e Rouge – Kieslowski parte das cores da bandeira francesa e discute o pertencimento, em tempos modernos, de seus personagens nas questões referentes à liberdade, igualdade e fraternidade que permeiam a França.
Após anunciar sua aposentadoria, no final das filmagens da Trilogia das cores, Kieslowski, a convite de seu co-roteirista e colaborador, Krzysztof Piesiewics, inicia outra trilogia, esta inspirada na obra literária Divina Comédia de Dante Alighieri. A trilogia se dividiria em Paraíso, Purgatório e Inferno. Entretanto, esta nunca se realizaria com sua presença – em 1996, Kieslowski vem a falecer, aos 54 anos, vítima do coração. Os roteiros finais ficaram inacabados, com exceção do primeiro, Paraíso.
Tom Tykwer, diretor alemão de Corra Lola, corra, assume a primeira parte da trilogia e filma Paraíso, tendo no elenco a atriz inglesa, Cate Blanchett e o jovem ator estadunidense de ascendência italiana, Giovanni Ribisi.
Trata-se aqui de manter na ossatura do roteiro a perspectiva de trajetória existente na obra Divina Comédia de Dante Alighieri – não se configurando como uma adaptação da obra literária, da jornada de Dante e sua amada, Beatriz, entretanto a perspectiva é a mesma quando seus protagonistas, Felippo e Phillippa embarcam numa viagem existencial, mensurada pela inevitabilidade.
Assim como Julie de Bleu, Philippa de Paraíso foge não em busca da liberdade, mas sim do conformismo em aceitar os desmandos, as injustiças e traições da vida e rende-se ao inevitável de ser, no sentido mais profundo da palavra.
Julie (Bleu), diante da perda de toda a sua família, marido e filha, em um acidente de carro, rompe com todas as convenções: não chora, desfaz-se de todas os objetos ou lembranças, vende sua casa, incinera seu passado - demonstra querer reconstruir sua vida a partir de uma ambígua situação, a de não abrir-se mais ao mundo. Kieslowski parece querer nos dizer que não há liberdade total se estivermos vulneráveis ao mundo, às relações.
Na segunda parte da Trilogia das cores - Blanc, novamente o impasse no âmbito do existencial, porém neste roteiro, transposto a situação precária de ser um estrangeiro, de não pertencer pátria escolhida e, minimamente, o de não ser compreendido devido a diferença de idiomas. Assim como a obra de Camus, o estrangeirismo deixa de ser uma situação e passa a se configurar como um drama existencial, de estado de sítio, exílio e questionamento sobre o que vem a ser igualdade.
A descoberta da desigualdade em Blanc, pelo personagem Karol Karol, potencializam a poética existencial de Kieslowski na terceira parte da trilogia, Rouge, no encontro de todos os protagonistas dos três filmes, num naufrágio, quando se cruzam, quase se reconhecem em sua miséria humana e, como espectadores prevemos uma nova jornada existencial, a partir dos sobreviventes de uma catástrofe.
Em Rouge, Valentine, jovem modelo, atropela um cão. Presta socorro ao animal e decide devolvê-lo a seu dono, porém este, um juiz que tem como hobby ouvir inadvertidamente as ligações telefônicas de seus vizinhos, não se interessa pelo destino de seu cão. Kieslowski apresenta um personagem à margem da sociedade que não deseja misturar-se e nem participar das convenções sociais, porém parece interessar-se pelo alheio, pela perversidade de seus iguais.
É preciso se conhecer o mundo para negá-lo.

Kieslowski constrói uma metáfora da jornada existencial, mais precisamente sobre a inevitabilidade de ser, carregando em sua poética certos elementos místicos e por vezes niilistas, numa narrativa que beira a fronteira do invisível e do visível. Seus personagens pouco falam e são essencialmente seres repletos de sentimentos e conflitos interiores, invisíveis. As situações são evidentes, visíveis, pequenas emboscadas para o instauro da existência de seus personagens. Torna-se vital desconstruir-se e reconstruir-se no estado limite das coisas. Kieslowski em sua realização cinematográfica, particularmente em sua obra desenvolvida em trilogias, insere a idéia de temporalidade e espacialidade como fatores de ação contínua, uma espécie de simulacro para a hipótese de que tudo é parte de um imensurável encadeamento existencial.
A conformação em trilogia estabelece uma relação entre seus filmes, propondo uma análise dilatada de sua obra - o trânsito das situações, ações e personagens parece estar no campo da predestinação onde é preciso cumprir seu destino, aceitar o inevitável, mesmo que a salvação seja a conseqüência da imolação da individualidade.
Compreender a conformação em trilogia, adotada tantas vezes por Kieslowski, como um expediente narrativo ou um recurso de carpintaria poética é submergir a complexidade proposta pelo cineasta. É buscar respostas onde não se pergunta nada, num universo em que o cinema é poesia e basta.

Referências:

SAVERNINI, Erika. Kieslowski no paraíso. Trabalho apresentado no Núcleo de Comunicação Audiovisual, XXVI Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Belo Horizonte/MG, 02 a 06 de setembro de 2003.Sugestão de site sobre Trois Couleurs: http://www.screamyell.com.br/secoes/trilogia.html

SAVERNINI, Erika. Índices de um cinema de poesia: Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski. Belo Horizonte: Escola de Belas Artes da UFMG, 1998.


Maira Jeannyse, Cuiabá, 28 de julho de 2010.

* Este é um fragmento do ensaio de conclusão da disciplina Arte e subjetividade (Profa. Dra. Maria Thereza Azevedo/ UFMT). Todo os direitos autorais deste texto são detidos pela autora.

Nenhum comentário:

Postar um comentário