terça-feira, 27 de julho de 2010

“MINHA HISTÓRIA” DE CHICO BUARQUE DE HOLLANDA


Minha História de Chico Buarque – uma analogia a hinterlândia portuária"* 



RESUMO: Este ensaio parte do conceito de hinterlândia portuária, ambiência onde se configura o consumo e a circulação de serviços, translocalizando esta teoria para o espaço subjetivado da letra musical, Minha História, de Chico Buarque de Hollanda. O ensaio discorre sobre a idéia de como se faz um produto, na perspectiva da subjetivação, seja um filho ilegítimo, à revelia, em busca de sua história ou origem.

Interpelar pelo passado onde a existência de um pai desconhecido, marinheiro, figura transitória dos portos, é a ausência mais presente e a maior certeza de um futuro incerto, é verbo que habita o narrador de Minha História. É o ponto de partida de uma narrativa musical que revela a cada estrofe não apenas um malandro da zona portuária, mas um personagem delimitado por uma ambiência onde tudo se integra a uma única geografia – o porto. Espaço dos embarques e desembarques, a região das relações migratórias e líquidas.
Etimologicamente, o termo hinterlândia é aplicado pela geografia como território contíguo à costa marinha, sendo a descrição de uma região servida por um porto ou via navegável. Configura-se como um lugar central de concentração de oferta de bens e serviços para uma determinada questão regional.
As atividades desenvolvidas numa hinterlândia geram um sistema que possibilita o abastecimento das metrópoles, prestando um serviço confluente de consumo e produtividade.
No entanto, poucas são as vantagens profissionais para os habitantes de uma hinterlândia – geralmente marinheiros, estivadores, ou mais precisamente, operários do porto, figuras marginalizadas e ignoradas pelas cidades médias ou globais.
Minha história (1970) trata-se de um narrativa biográfica de indivíduos que, se na canção são ficcionais, na vida cotidiana do cais do porto, existem e são, insonemente, o resultado do meio em que vivem. Como náufragos em terra firme, ignorados e deslocados – o mar os habita como um vão, um hiato – no território “entre-lugar” daqueles que se configuram como seres abismais, atravessados pela paisagem – a hinterlândia portuária.
A canção numa leitura interpretativa, observada pelos critérios dramatúrgicos, desvenda a cada estrofe a história do malandro “Jesus” e sua jornada em busca de sua identidade. Como seu homônimo, ele inquire sobre o porquê de ter sido abandonado por seu pai, vivenciando uma ação conflituosa, a de ser um bastardo, abandonado a própria sorte. O conflito se estabelece no campo do consumo, pois sentir-se um filho da circulação de serviço é perceber-se como produto descartável. Quase num trocadilho: o que o consome é a sua existência pelo consumo.
A inquietação que o perpassa opera-se no âmbito espaço-temporal, pois se verifica especificidades de sua personalidade atreladas à ambiência que o circunda e ao passado que se apropria do presente e impede uma possibilidade de futuro.
O porto, arena principal de Minha História, é cenário recorrente na obra de Chico Buarque, criando interfaces trágicas que estabelecem vínculos narrativos de inter-relação entre personagens que esperam ou que partem encerrados em circunstâncias de abandono e solidão, e conflitos de revolta e desesperança.
Chico Buarque parece deslindar o porto ao amalgamar o conflito de seus personagens, habitantes ou passageiros da zona portuária, construindo uma alteridade narrativa, onde o comércio é circunstancial, existencial e experiencial – o corpo é produto transitório, uma falsa efemeridade que apazigua os descompromissados, sacia, alimenta e constrói o desejo, igualitariamente aos contêineres saturados de objetos e produtos que constituem a logística do consumo.
O sujeito da “hinterlândia buarquiana” é resultado das condições que o constituem, é produto dialético, no confinamento espacial e na liberdade existencial de ser prisioneiro em-si:

“(...) Minha mãe com o olhar cada dia mais longe

Esperando, parada, pregada na pedra do porto (...)”

Jesus, o malandro de Minha História, torna-se objeto sim, mas de subjetivação, pois o porto que o habita é da ordem da estética existencial, força motriz de sua biografia, da concepção silenciosa em meio ao cheiro do mar, a formação identitária num cabaré entre o acalanto das prostitutas e a ironia de seu nome, a maturidade de bar em bar, entre ladrões e amantes, na via crucis do copo e da cruz de ser porque se está.
O protagonista de Minha História parece ter sido gerado na relação de troca e serviço, feito produto gerado pelo extra-regional, aquilo que está fora do regional (neste caso, o marinheiro) que, detém poderosa concentração de oferta de serviço para uma hinterlândia regional (a mãe do protagonista). Estabelecendo-se assim uma espécie de relação comercial – de controle econômico e político sobre o espaço regional.
a canção estabelece a relação de interação espacial – o marinheiro que vem de longe, de outro lugar, assim como uma escala extra-regional, aproxima-se da mulher, que pode ser vista como uma metáfora a escala regional, e após “abastecê-la”, ou seja, cumprida sua função de “provedor”, parte, sem saber que gerara ali um produto desta interação entre bens e serviços.
Este produto é mediado pelo porto, aqui visto como um espaço subjetivado da hinterlândia, onde se constrói o desejo e se materializa o consumo, a todo e qualquer custo:



“(...) Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo

Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz

Me conhecem só pelo meu nome de Menino Jesus”.


Maira Jeannyse - Cuiabá, maio de 2010.

* Este é um fragmento do ensaio de conclusão para a disciplina Tópicos Especiais em Comunicação e Mediações I (Prof. Dr. Yuji Gushiken - UFMT) cujos direitos autorais são detidos por sua autora.











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