terça-feira, 27 de julho de 2010


“A MORTE EM VENEZA DE LUCHINO VISCONTI: UMA ADAPTAÇÃO DIALÓGICA E INTERTEXTUAL”*

Resumo: O presente ensaio analisa o processo dialógico e intertextual na adaptação cinematográfica, de Luchino Visconti, de A Morte em Veneza, partindo da obra literária de Thomas Mann e na biografia do compositor Gustav Mahler – uma construção intertextual imanada nas questões literária, poética, estética e biográfica.

Gilles Deleuze, em seu livro A Imagem-Movimento (DELEUZE,1983) evidencia a relação de fluxo narrativo e pensamento nas escolhas de continuidade e cortes – o pensamento deslocado em termos áudios-visuais. A sensação do tempo passa a ser o da duração vivenciada.
Neste sentido a dialogia de linguagens, por meio da adaptação, contribui na ampliação da narrativização.

O presente ensaio tem como objeto de análise a adaptação cinematográfica de A Morte em Veneza de Thomas Mann, pelo cineasta italiano Luchino Visconti que, ao roteirizar cenas de travessia, entre o poético, o estético e o biográfico, utiliza o conceito de dialogismo.

1. A Morte em Veneza de Thomas Mann – uma obra literária sobre a subjetivação da arte:

A Morte em Veneza, literatura publicada em 1913 e de autoria de Thomas Mann, é uma obra que investe num retrato dicotômico, sob o ponto de vista de um artista que, numa travessia experiencial é atravessado pela decadência da aristocracia, em plena Belle Époque e pela imponderabilidade do Belo, mediadas pela crise de criação.
Thomas Mann insere em seu fazer narrativo o espaço da linguagem e a crise vivida pelo homem na passagem do século XIX ao início do século XX, trazendo para cena de seus livros o mal-estar de uma civilização. 
Em Mann ser artista, na sociedade aristocrática, é estar exposto ao exotismo e a depravação, ao sensual e ao perigoso, oprimido nas rígidas normas da boa conduta. Assim, fatalmente, seus personagens existem em meio ao desvio, a inquietação e na colisão entre duas realidades – a do Belo, subjetivação da arte, e a do Grotesco, a realidade da vida prosaica.
Em A Morte em Veneza, o protagonista Gustav von Aschenbach está em busca de um lugar que o retire da mediocridade eminente a que está sujeito um grande artista que alcançou a maturidade da idade e de sua arte.
Escolhe Veneza, cidade de canais e pontes, trançada de vielas pelas quais ainda não saberia que perseguiria um jovem polonês, Tadzio e se defrontaria com a doença, a decomposição e a morte. A travessia se faz perceptível como experiência transformadora, como o lugar do entre que desmascara a vida e seus perigos.
Em A Morte em Veneza é esboçado desde as primeiras cenas o caminho abismal de Aschenbach através de uma série de figuras sombrias que o acompanham e pressagiam uma travessia fatal. O velho janota, o gondoleiro e o cantor bufo são aparições de duvidoso aspecto humano que conduzem Aschenbach a travessia existencial que será em direção à descoberta de si.

2. A Morte em Veneza de Luchino Visconti – uma obra dialógica sobre literatura, poética, estética e biografia:

Luchino Visconti articula em sua adaptação cinematográfica de A Morte em Veneza, a teoria da intertextualidade, com raízes no “dialogismo” de Bakhtin, onde enfatiza uma abordagem não fidedigna ao texto original, mas imbricada na construção híbrida – desterritorializando e redimensionando o discurso antes meramente literário.
O enredo original da novela de Mann consiste na jornada do escritor Gustav von Aschenbach a um balneário em Veneza, onde intenciona descansar de sua produção literária e de uma iminente crise criativa.
Visconti constrói um roteiro baseado no dialogismo entre a obra original de Mann e a biografia do compositor Gustav Mahler, estabelecendo um cruzamento entre ficção e realidade. O protagonista Gustav Von Aschenbach é um desdobramento do próprio Gustav Mahler, compositor do Adagietto, trilha que conduz o personagem descrito por Mann e criado por Visconti. Na obra literária o protagonista é um escritor; na cinematográfica, é um compositor erudito que assim como Mahler, sofre a perda de uma filha, prematuramente, o que o leva a desmesura das pessoas acossadas pelo sofrimento. Mahler compunha sobre a morte, tema recorrente em sua obra.
Mann constrói uma teoria acerca da “doença como metáfora” em A Morte em Veneza - a epidemia de cólera revela a face da doença, que traz a morte e transforma Veneza numa cidade decadente, infectada, vazia e cheia de labirintos fétidos e sombrios - assim como uma doença moral que cerceia, embota e desfigura.
Visconti vê na patologia da paixão de Aschenbach por Tadzio, a subversão dos valores sociais – Aschenbach ao perceber-se refém do tempo perdido, tenta reparar a decomposição seja na ambiência de sua criação, seja na ambiência geográfica, ou até mesmo no âmbito físico, numa travessia fatal em direção à descoberta de si.
A primeira seqüência de A Morte em Veneza de Visconti desloca a paisagem marítima ao plano da subjetivação, cadenciando, à deriva, Aschenbach – um estrangeiro, de aparência frágil e solitária, imerso na fotografia saturada de Veneza, em tomadas longas, contemplativas, mediada pelo mar que atravessa e desvia Aschenbach a uma experiência transformadora, de delicadeza e eternidade. A travessia é estética, poética, biográfica e fatal.
O protagonista de Visconti não se limita as lembranças de fracasso em meio a um concerto ou a sua vida conjugal, o belo que o assombra só pode existir na imperfeição, na descoberta da maturidade ao desejar o jovem.
Tadzio é a revelação crepuscular do belo e quando, finalmente, Aschenbach, alegoricamente rejuvenescido, vislumbra a silhueta de Tadzio, em meio ao mar, ele compreende que a subjetivação é inalcançável, que não é ele, criador, que atravessa a arte, mas a arte que o atravessa.



Aschenbach morre.



Visconti viu nesta ambivalência Mahler-Aschenbach a arena principal para sua adaptação – a ferramenta dialógica, aqui com propriedade sígnica, aproxima e afeta dois universos aparentemente distintos, a descrição literária ficcional de uma artista e sua arte e, a arte na vida real de um artista.
A Morte em Veneza de Visconti embebeda-se no hibridismo contemporâneo, extrai da teoria de Bakhtin a voz polifônica, heteroglóssica, dialógica e intercomunicacional para sua adaptação, translocando o conceito restritivo de “retrato fiel de uma obra” ao universo da obra, como discurso plural e conceitual.

Maira Jeannyse - Cuiabá, maio de 2010


* Este é um fragmento do ensaio apresentado para a conclusão da disciplina Tópicos Especiais - Poéticas Contemporâneas (Prof. Dr. Robert Stam - NYU), cujos direitos autorais são detidos por sua autora.




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